Como lidar com o fato de que a sua percepção é somente sua e abrir espaço para a do outro
​​​​​​​Se um quarto tem quatro cantos, e em cada canto tem um gato, o quão chato são essas charadinhas? Muito. Mas essa, em particular, tem um apelo para a questão da perspectiva, que me parece interessante. A resposta consiste em dizer que se cada gato vê três gatos, existem quatro gatos no quarto. Eis aqui um popular desafio de lógica dependendo apenas da visão de felinos hipotéticos. Tamanha é a força do ponto de vista.

Passando para a espécie humana, faz-se evidente a frequência de conflitos interpessoais, dentre os mais variados assuntos e diante de diferentes níveis de intimidade. Nós, contemporâneos do século XXI, estamos viciados em discordar. Não precisa nem ser uma discordância justificada ou sequer imbuída de franqueza, pode ser apenas a célebre vontade de ser do contra. O que importa é afirmar o que você acha, sendo essa opinião obrigatoriamente inigualável. Portanto, não há com quem concordar, de forma espontânea, além de si mesmo.

É fato que essa dinâmica vem da necessidade, em tempos de redes sociais, de se ter uma opinião formada sobre tudo. Mas antes disso, todos nós já tínhamos uma visão sobre tudo. A verbalização compulsória pode ser recente, mas a percepção é intrínseca à existência. Se alguém existe, então, percebe o mundo de alguma forma. A problemática se dá em como harmonizar, sobretudo no nosso círculo de convívio, tais percepções únicas. Porque, ao contrário das opiniões, as percepções nem sempre são compartilhadas e muito menos racionalizadas. Elas simplesmente são.

Como lutar contra o que alguém pensa de você? Como entender por que foi tomada certa atitude? Se o autoconhecimento é uma jornada sem fim, tentar compreender motivações alheias seria uma jornada ingrata. Não há precisão, nem gratificação, somente o desejo de lidar o melhor possível com os demais colegas de planeta. Sendo que para flexibilizar o comportamento de desconhecidos, podemos superar uma frustração provavelmente momentânea — até porque, no fim das contas, você não saberia nada da pessoa para poder fazer diagnósticos. Mas e quando você não só conhece a pessoa, como também a ama?

É difícil enfrentar a decepção sobre o comportamento de um amado. As expectativas podem estar amarradas ao pé da mesa que, ainda assim, darão um jeito de voar. A gente aprende a depositar confiança e a projetar vários comportamentos-modelo para quem nos ama. Só que esse status acaba esmaecendo a humanidade dessas pessoas. Afinal, elas têm suas próprias impressões da realidade. E são estas impressões que norteiam suas ações. Quando alguém nos magoa, não devemos traçar uma necessidade de culpabilização. Deve-se evitar julgamentos a fim de respeitar o ponto de vista do outro e tentar conciliar as visões. À parte de atitudes antiéticas ou de má-fé, é claro.

Evidentemente, na prática, os apelos à inteligência emocional podem falhar. Mas, de todo modo, é importante pensar nas pessoas como pessoas. E não como seres que nos devem algo intrínseco ao amor. Seja ele fraterno ou romântico. A interpretação de certas quebras de expectativa como desamor não faz bem a ninguém. Quando sentimos amor, devemos demonstrar esse sentimento nas atitudes. Entretanto, continuamos a ser indivíduos. O que deixa a nossa própria perspectiva sempre proeminente, tal qual fazem gatos em quatro cantos de um quarto.
Homo perspectivus
Published:

Homo perspectivus

Published:

Creative Fields